Documents of Innuendo



Com a participação dos artistas:
Gil Ferrão, Pedro o Novo, Vera Matias e Vera Midões.


por Guilherme Figueiredo,

Imagina isto:

Caminhas por um bairro e tudo se parece como devia. A luz toca as superfícies e as figuras humanas mexem-se muito lentamente. O lixo acumulado transborda até ao lancil do passeio. Algumas paredes estão limpas enquanto outras estão cobertas de lama e de desenhos. Começas a relaxar, a deixar-te envolver pela normalidade do que te rodeia. Deslizas para um estado de indiferença enquanto andas, e, então, passas pelas figuras, caminhas ao lado das paredes, cruzas-te com o lixo e os reflexos, e nunca notas que tudo é falso. Apercebes-te que seguras uma pasta rígida com a mão esquerda, abres e vês que está cheia de documentos categorizados sobre aspetos da vida diária. Começas a folheá-los.

O primeiro que escolhes ler fala sobre a arqueologia dos personagens de Pedro O Novo. Diz, e passas a citar: "Rigidez transborda e ultrapassa os limites da versão pictórica da rua. Estas são simulações do que a realidade aparenta. Mas nunca esticadas tão largo para fazer duvidar a veracidade ou congruência das formas apresentadas.” Pensas para ti, a pintura consegue fazer isso, envia-te na direção da simulação e da ficção, mas nunca tao longe até ao ponto que permita que as silhuetas se tornem em formas turvas... Começas a imaginar uma paisagem enevoada, ...As distâncias ganham, aqui, uma nova importância. A distância entre superfície e transeunte. Distâncias entre o facto e a suposição, ou entre a ficção e a carne.

Retiras a atenção do documento e olhas para as pessoas que pensavas vivas, estas aparecem agora como recortes de cartão. O lixo é um adereço.

Isto abala-te, mas decides agarrar mais um ficheiro da mala. Decides retirar este aleatoriamente e, então, desvias o olhar. Assim que o fazes, o documento escolhido cai ao chão e abre-se numa das páginas. Ajoelhas-te na sua direção e começas a absorver a informação apresentada: “O tecido muscular foi facilmente arrancado do asfalto. Transformou-se em imagens desfiguradas salpicadas pelo cimento. A banalidade da rua é projetada no chão lá fora.” Soltas um pequeno sorriso e pensas As sombras das pessoas são projetadas no chão e adquirem a textura granulada do asfalto. Cada passo, ou movimento, cria uma revelação fotográfica na superfície do cimento. Continuas a ler “...portanto todos os cantos das pinturas de Vera Matias não deixam dúvidas em relação à sua materialidade e intenção. É o aspeto mais cru de um innuendo. Uma sugestão de lama.”

As imagens do que acabaste de ler deixam-te sem palavras. O chão que circunda os documentos torna-se num líquido espesso que engole os papéis. Foges para o passeio e observas o cimento transformar-se numa matéria instável. O teu interesse nestes documentos aumenta e decides, mais uma vez, investigar a pasta preta. Admiras um ficheiro verde com uma pequena dobra na ponta que desvenda o início de uma frase (e começas por ler este fragmento em voz alta) “As conversas São manuseadas como jogos,” Abres a capa. “e estes parecem ter um foco na sua jogabilidade, mas a verdadeira atenção esta nos cantos da arena — a audiência. No trabalho de Gil Ferrão, as coisas que se mexem nunca são os/as protagonistas no fluxo da informação. São, sim, as periferias do que está a ser ativo que se torna no jogo, porque tudo o resto, é play por play”. Ler isto relembra-te a Ultima vez que entraste numa espécie de competição, Nas arenas do play as coisas atropelam-se umas às outras, portais conectam cada elemento como cestos de basket onde a bola desaparece depois de os atravessar. Tudo o que rodeia os tabuleiros, os campos e os círculos mágicos são os verdadeiros agentes do jogo. Sentes satisfação por ter tido este pensamento.

Olhas à tua volta e apercebes-te de que tudo o que pertencia ao teu ponto de vista anterior e te parecia estático está, na realidade, num estado frenético de velocidade e confusão.

Começas a olhar de forma suspeita na direção das paredes. Assumes desde já que haverá um truque ou uma ilusão associada, e então chegas mais perto para investigar. Acaricias a mão pelas inscrições da superfície e parecem-te permanentes, nada perde a compostura como nas experiências anteriores, e decides procurar o documento sobre paredes. Chegas aos ficheiros com P e começas a folhear, ...parecido, paréctase, paredão, AH parede! “Anarquia é produzida enquanto se constroem estruturas. Cada tijolo é uma mensagem. As arquiteturas em forma de diagrama de Vera Midões são construídas pelo fogo. Um estado de mudança em constante metamorfose. As paredes não são telas, ou pelo menos estas não estão preparadas para o serem. São ameaças ao equilíbrio das infraestruturas.” Paras de ler bruscamente e pensas, O planeamento ameaça o caos, e ainda assim não haveria um sem o outro. Olhas de novo para os gatafunhos na parede e observas a sua organização caótica, ...As paredes são isso mesmo, toneladas pensadas ao milímetro, — o principal material é a ordem — e, no entanto, são usadas para o caos e de forma caótica.

De olhos semi-cerrados desvias lentamente o olhar para a parede para confirmar as mudanças e, como previste, delas começa a descascar uma espécie de pele. Uma superfície gelatinosa que traz agarrada todas as inscrições e sujidades, acaba por cair e se contorcer no chão.

Tudo isto era de esperar, sabias que algo assim aconteceria e não perdeste a compostura nem por um segundo. A rua desfaz-se à tua volta. Começas a caminhar em paralelo com a parede e eventualmente uma nova rua é-te apresentada. Parece-te igual à última momentos antes das mudanças. Entras neste espaço a tremer de expectativa. Pensas no que experienciaste, onde tudo era um chamariz para enganar os sentidos. Olhas para a tua mão, a pasta já lá não está. Os documentos desapareceram.

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