across the open field / em campo aberto



Com a participação do artista:
Rui Hermenegildo.


por Eduardo Brito, Cineasta,

o que se faz uma série fotográfica? Por outras palavras, o que unifica, o que dá sentido a um conjunto de imagens, dispostas em paredes por onde nos movimentamos ou em páginas de um livro que se sucedem perante o gesto de folhear?

A pergunta não esconde um caminho para demonstrar uma qualquer evidência, antes se faz como ponto de partida: estamos à deriva e tudo oscila, como num barco. Incertos como em qualquer princípio: à exactidão de uma propriedade, corresponderá a dúvida no campo oposto. Haverá sempre uma margem irregular, um espaço de conformação próximo dos sonhos: tudo para que uma determinada proposta de organização (a série) se desordene, flutue e, desta forma, ganhe um certo sentido em cada um dos seus destinatários. A desordem é uma força.

Normalmente, a função de um texto destes é encontrar um denominador comum, capaz de mobilizar um número indefinido de leitores para um intervalo de encontro e de aceitação onde confluem vontades: do autor, do curador e, sobretudo, das imagens. Mas pode também ser o inverso disso — um espaço de agitação, capaz de tornar opaco o transparente, misterioso o óbvio, nubloso o traço firme. Quando isso acontece, a série de imagens torna-se íntima como um verso, pausada como um fotograma: na nossa imaginação haverá sempre espaço para um antes e para um depois de cada fotografia.

Uma série fotográfica não se faz apenas de uma sequenciação, qualquer que seja a razão que a determina: há algo próximo da beleza dos cansaços merecidos quando a viagem conhece o destino sem escolher o caminho para lá chegar. E isto implica entender - do autor aos espectadores - o que há de escondido entre cada imagem, a seguir a cada pausa. Ou seja, perscrutar as imagens que faltam entre as imagens que vemos, antever o movimento seguinte das estátuas em cada fotografia que em estátuas tudo transforma e tudo detém, tudo suspende.

As imagens de Rui Hermenegildo, apresentadas em paredes de galeria ou em páginas de livro, são precisamente pontos de passagem de um campo aberto desta agitação: olhar e ligar estas fotografias é então um gesto de liberdade e da imaginação: de um rosto escondido na cortina de um photomaton, de um depois, das causas da inscrição da melancolia num rosto, no que habita o escuro de uma sala, mas também de tantas outras coisas, secretas como um desejo. Como diria Kim Beil (Anonymous Objects, 2024), há sempre algo de imperscrutável em cada fotografia cujo mistério cresce, mais tarde, na nossa memória

In my beginning is my end. Now the light falls / Across the open field, leaving the deep lane /escreveu T. S. Eliot em East Coker, segundo dos Quatro Quartetos (1946): é nestes versos que descansa, discreta, uma proposta de leitura: gestos de uma repetição involuntária, uma força psíquica, vinda dos sonhos, das recorrências, das obsessões e fascinações pelo fora de lugar, pelo descontexto (como não lembrar Freud e o vale da estranheza?), das coisas que não se explicam mas que desde sempre povoam uma cosmogonia que se quer dar a ver e cujo campo — enquanto rectângulo onde a imagem existe e se limita pelo enquadramento — se abre, num imaginário expansão e de continuidade, de uma narrativa que se prolonga e repete até ao fim do tempo.

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